O ano de 2012 começava difícil pra mim. Eu tinha vinte e poucos anos e nada de concreto na vida. O cara que eu amava desde os 15 era um porra louca que todo ano surgia com uma namorada diferente, uma mais bonita do que a outra. Ainda assim, mantivemos contato durante anos, estabelecendo uma espécie estranha de amor. Eu morava em Garibaldi (RS), uma cidade pequena que me limitava, tinha trancado duas faculdades, Jornalismo e depois Letras, e não conseguia saber em qual delas era boa.
Os empregos que tive até então não extraíam nada de criativo de mim, só trabalhava pelo dinheiro, que servia para bancar algumas festas. Frustrada no amor e na profissão, me sentia liquidada nos primeiros rounds da vida adulta.
Pra me afundar um pouquinho mais, nos primeiros minutos do dia 12 de janeiro, meu aniversário de 23 anos, minha avó faleceu. Ela se chamava Lourdes e eu a amava, assim como amava meu avô, que tinha partido apenas um ano antes, mas cuja morte ainda não tinha conseguido assimilar (a notícia veio pela empregada, ela entrou no meu quarto numa manhã de sábado e eu, numa ressaca de álcool e cigarro, só a ouvi dizendo: “o nôno morreu”).
Profundamente fragilizada, eu tentava buscar solução para organizar minha vida, traçava alguns planos, mas só conseguia ficar mais angustiada. Não demorou muito para que sofresse um ataque de pânico, que foi, de longe, a coisa mais assustadora que já me aconteceu.
Eu me dava conta de como havia andado em círculos até então, embarcando em experiências que me faziam mal e perdendo oportunidades. A hora, porém, não era de agir, mas de parar tudo para cuidar de mim. Tinha uma lista de dores que não conseguia superar.
Comecei a fazer yoga duas vezes por semana para controlar a ansiedade, e intercalava sessões de reiki com consultas na psicóloga a cada 15 dias. Apelidei essa rotina de “combo da salvação”, e me entreguei. Parei de fumar e de comer carne ao mesmo tempo, o que causava estranhamento nas pessoas, inclusive em mim.
Comecei a ler um pouco sobre espiritualidade, um tipo de leitura que, a bem da verdade, nunca me interessou, mas a minha situação era realmente complicada. Sentia que não era capaz de comandar minha vida. Lentamente assimilava a morte dos meus avós, que eram como pais e cuja perda foi a mais dolorida experiência com a morte.
Cortei meu cabelo curto como menino. Muita coisa morria dentro de mim e precisava expressar no meu exterior. Uma nova pessoa precisava nascer e o parto estava sendo doloroso. Virei as costas para aquele amor sem dar muitas explicações. Prossegui com o “combo da salvação” até o fim da primavera daquele ano, e conforme me sentia melhor e restabelecia a confiança em assumir novamente o controle da minha vida, comecei a traçar novos planos.
Próximo passo
Não queria fechar 2012 sem dar um passo significativo, um afago no espírito. Eu tinha sofrido muito. Ao mesmo tempo, tinha pressa em realizar minha vida. Sempre tive dois sonhos: escrever e viajar pelo mundo. Ter muitas experiências. A escrita ainda era encarada com receio. Sempre fui muito rígida e cobrei um padrão alto dos meus textos. Escrevia, mas escondia tudo. Me restou viajar, e precisava sair do meu habitat para voltar a ver o mundo como um lugar maravilhoso.
Mas não tinha dinheiro para sair do país, por exemplo. No verão de 2010 tinha feito uma breve aventura com uma amiga: pegamos uma grana e fomos passar três meses em Torres, no litoral. Eu ainda estudava Letras e o momento era adequado. Já alimentava todas as frustrações que mais tarde irromperiam numa crise, e daquela breve escapada ficou a vontade de fugir novamente da minha vida em Garibaldi.
Então juntei dinheiro e mais uma vez mirei o litoral. Dessa vez, subiria um pouquinho no mapa, iria para Florianópolis (SC). No fundo, sabia que aquilo tudo seria passageiro, mas agi como se fosse pra valer. Queria viver, ainda que temporariamente, como na música da Joni Mitchell, A Bird That Whistles: I took a house by the water/ Took a man on a mountainside/ Pretty house by the water/ Lovely lover by the waterside/ Corrina, Corrina/ Do you have to go?
Sim, eu tinha que ir. Precisava de um refúgio que acalmasse o coração. Pesquisei casas na internet, dei uma olhada na lista de cursos na UFSC, me inscrevi para o vestibular em Antropologia e convenci meus pais de que tudo daria certo.
Fui, de novo, antes do Natal. Morei durante um mês com uma mulher dez anos mais velha do que eu, a Kati. Ela morava com dois gatos em uma casa iluminada, cheia de flores e plantas, bem no meio da mata que circunda a Lagoa da Conceição. Bati na porta dela de manhã cedinho, ela me serviu chá, pão e ghee, a manteiga saudável. Me levou à feirinha de orgânicos no centro da Lagoa, me apresentou a maravilha do suco verde feito por uma senhora de cabelos grisalhos que turbinava seus clientes com uma mistura de folhas de couve, brócolis, maçã e outros ingredientes potentes. Isso fechava com minha decisão de ser uma pessoa saudável, tanto nos hábitos quanto nas relações.
A Kati e eu nos demos muito bem. Ela era espiritualizada, serena, queria entender minha angústia. Me acolheu como se eu fosse uma irmã mais nova. Me apresentou dois livros definitivos para essa fase da vida: A Ciranda das Mulheres Sábias e Mulheres Que Correm Com os Lobos, ambos da psicanalista mexicana Clarissa Pinkola Estés. Eles fala da força e da sensibilidade femininas, mas também de como as mulheres, enclausuradas num papel secundário, negaram a si mesmas para atender aos outros, e como nos encolhemos para vestir uma roupa que não serve, a ponto de chegarmos a quebrar. A leitura propunha a reconexão com o feminino mais profundo, aquele ligado às matriarcas que antigamente detinham o poder.
Então eu pegava uma bicicleta velha comprada num brique e levava os livros para cantos aconchegantes da lagoa, como um trapiche de tábuas gastas e nada firmes, mas que oferecia uma visão esplendorosa no fim do dia. Lia algumas passagens reconfortantes enquanto admirava a paisagem. A Lagoa da Conceição é colorida, cheia de flores, árvores e arte nas calçadas. Me sentia protegida naquele ambiente criativo.
Minha diversão era chegar nos pontos mais altos da rua Laurindo Januário da Silveira, que ligava o centro da lagoa à minha casa, e descer bem rápido com aquela bicicleta, sem capacete nem nada, as pernas abertas como fazia quando era criança. Recuperei a sensação de ser feliz nesses momentos. E tinha a igrejinha de estilo barroco colonial no alto do morro, perto do Cantos dos Araçás, por onde se chega subindo uma ladeira íngreme e repleta de casas de estilo português. Lá foi uma das vezes em que prometi a meus avós que eles iriam se orgulhar de mim.
Um mês depois mudei para uma casa situada numa rua paralela à da casa da Kati, onde fui morar com dois estudantes de Ciências Sociais, a Natália e o Alexandre. Foi um bom encontro. Tínhamos aflições parecidas em relação ao futuro, mágoas ainda latentes, como é natural nos jovens, e uma tendência a sermos mais críticos e impacientes uns com os outros (como é natural nos jovens). Lembro das paneladas de feijão que a gente fazia, sempre tocando Novos Baianos e Dorival Caymmi na cozinha, o cheiro da maconha, o descanso no jardim dos fundos, o muro adornado com flores de hibisco. Eu tomava chá, conversava, rabiscava algumas poesias. Aquilo tudo me fazia muito bem.
Mas também tinha que trabalhar, e essa parte seguiu frustrante. Meu primeiro bico foi num fast food de frutos do mar no centro da Lagoa, onde ajudava o chef com tarefas gerais e lavava a louça. Isso me deixava irritada, porque o clima já não era de aventura, como tinha sido a brincadeira em Torres com minha amiga, mas de definição.
Devo ter trabalhado no fast food por, no máximo, dois dias. E nunca mais voltei. Não queria mais trabalhar sem prazer. Mas ainda fiz um bico de faxineira numa pousada que alugava chalés a alguns metros da minha casa. Foi apenas um dia. Ter que recolher pelos de desconhecidos no banheiro de um dos quartos foi demais pra mim. Eu queria escrever, não precisava daquilo. Até que encontrei um emprego de recepcionista numa outra pousada, essa bem ao lado da minha casa. Ali, pelo menos, eu poderia ler.
Foi o resultado do vestibular da UFSC que mudou os rumos da minha vida na ilha. Acabei sendo aprovada em Antropologia. Eu não queria aquilo? Bem, aquilo serviu de argumento para me tranquilizar achando que, nessa passagem por Florianópolis, ao menos teria uma opção caso quisesse ficar. Mas bastou o caminho se abrir para ver que não era por ali que eu deveria seguir. Então fiz outra mudança brusca nos planos e decidi que voltaria a estudar Jornalismo.
Estava certa de que queria escrever. Escrever qualquer coisa, desde que fosse todos os dias. Deixei passar algumas semanas e dei um telefonema para a Unisinos pedindo reingresso no curso. Meus pais ficavam desnorteados. Eles já não decidiam mais nada por mim. Só falavam que, se eu sabia o que estava fazendo, então tudo bem. Só queriam me ver feliz.
No final de fevereiro de 2013 eu retornava à Garibaldi e batia na porta de um jornal da cidade dizendo que queria escrever. Consegui o emprego de repórter dias antes de iniciarem as aulas. Eu já estava mais madura, as rédeas da minha vida presas bem forte em minhas mãos, e voltava para o jornalismo com a convicção que me faltou na primeira vez. Essa paixão, e uma segurança de que sei aonde posso chegar, eu não perdi até agora. Conhecer o mundo e entender as pessoas e suas relações é minha bússola.
As fugas, as frustrações, a depressão, a morte e o amor que me marcou profundamente: tudo isso faz parte de mim, e pode parecer estranho, mas tenho a impressão que me conferiram habilidades especiais para ser jornalista. Minha visão de mundo é ampla, profunda, tento não julgar as pessoas com pressa e sempre quero saber o que existe atrás das aparências. Não confio na normalidade. Sei que o ser humano é um bicho complexo, que, vez ou outra, fica deslocado em seu próprio papel e precisa fugir para retomar a própria vida. Minha curiosidade é saber como cada um lida com aquele abismo que fica embaixo de nós enquanto fazemos a travessia. É essa parte da vida que me interessa.
- Texto de Karine Dalla Valle, futura jornalista